terça-feira, dezembro 27, 2005

Paralisia

Entrar no comboio e apanhar um lugar sentado é uma aventura de empurrões e atropelos, chegando a roçar a violência física. É uma horda de gente sem educação, que diz “quaisqueres” e “há-des”, e que ganha o seu dia se for com a peida sentada. Nem que para isso tenham que atropelar a mulher que tenta entrar com os dois filhos, um deles pela mão o outro ainda no carrinho.

Esta urgência matinal fez-me lembrar algo a que assisti. Esperava pela camioneta que me haveria de levar à estação (isto porque ainda não era um porco capitalista… hoje vou de carro). Não existiam filas para entrar, mas tínhamos uma noção de quem estava primeiro e quem estava em último. Chega então um tipo de “meia-idade avançada”, para não o chamar de velho, acompanhado por duas características muletas.

Quando chegou a camioneta o tipo fez questão de passar à frente de todos. Até aqui tudo bem, uma vez que ele tinha uma certa idade e estava incapacitado. O problema é que a camioneta ia cheia e ele fez questão de entrar aos empurrões (algo que a sua “incapacidade” não o proibia de fazer), dizendo em alto e bom som: «eu tenho que me sentar!» e «deixem-me passar». Como é óbvio, intercalava estas duas frases com um característico «ai».

Lá conseguiu o lugar, por sinal um dos reservados. Sentou-se ao lado de um tipo novo, também ele, curiosamente, com as suas muletas. E é então que começa a festa. Como qualquer portuga daquela idade, começou a partilhar a história da sua desgraça com todos os presentes. Também as queixas eram constantes, ou não fosse essa outra característica intrínseca à malta que ainda não se habitou à ideia de que Salazar já morreu. Lembro-me dele dizer algo como «o médico disse que tive muita sorte, que podia ter perdido uma perna» e «foi um acidente de carro em que nem ia muito depressa». Parece uma contradição mas não duvido, uma vez que por vezes os acidentes mais absurdos são aqueles que nos trazem maiores dissabores.

O velho, ou o tipo de “meia-idade avançada”, falava directamente para a pessoa sentada em frente dele, mas com um tom de voz para todos escutarmos. Até que começa a aperceber-se que o tipo ao lado dele (o tal mais novo) também tem as suas muletas. Conclusão imediata: vou meter conversa com este para chorarmos as nossas mágoas e culparmos o Governo.

Pergunta-lhe então:
- E você? O que é que lhe aconteceu? Foi acidente?
- Não.
- Então foi o quê?
- É paralisia infantil.
(o velho, ou o tipo de “meia-idade avançada”, podia ter parado por aqui, mas resolveu enterrar-se mais um pouco)
- Pois… E tem isso há muito tempo?
- Desde pequeno…

Resumindo: ficou com cara de tacho e nunca mais abriu o bico.

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